quinta-feira, 18 de novembro de 2010

BOBAGENS

[Por Fabrício Carpinejar]

Comete bobagens. Não penses demais porque o pensamento já mudou quando se faz. O que acontece normalmente, encaixado, sem arestas, não é lembrado. Ninguém lembra do que foi normal. Lembramos do porre, do fora, do desaforo, dos enganos, das cenas patéticas em que nos declaramos em público. Comete bobagens. Disputa uma corrida com o silêncio. Não há anjo a salvar os ouvidos, não há semideus a cerrar a boca, para que o teu futuro do passado não seja ressentimento. Demite o guarda-chuva, desafia a timidez, conversa mais do que o permitido, coma melancia e vá tomar banho no rio. Mexe as chaves no bolso para despertar uma porta. Comete bobagens. Não compres manual para criar os filhos, para prender a ereção, para despistar os fantasmas. Não existe manual que ensine a cometer bobagens. Não sê sério, a seriedade é duvidosa, sê alegre, a alegria é interrogativa. Quem ri não devolve o ar que respira. Não atravesses o corpo na faixa de segurança. Grita ao vizinho que não suporta mais não ser incomodado. Usa roupas com alguma lembrança. Usa a memória das roupas mais do que as roupas. Desiste da agenda, dos papéis amarelos, de qualquer informação que não seja um bilhete de trem. Procura falar o que não vem na cabeça, falar uma música ainda sem letra. Deixa varrer seus pés, casa sem namorar, namora sem casar. Sê imprudente porque quando se anda em linha reta não há histórias para contar. Leva uma árvore para passear. Chora nos filmes babacas, dorme nos filmes sérios. Não esperes as segundas intenções para chegar nas primeiras intenções. Não digas eu sei, eu sei, quando nem se ouviu direito. Almoça sozinho para sentir saudades do que não foi servido em tua vida. Liga ao amigo sem motivo, lê o livro sem procurar coerência, ama sem pedir contrato, esquece de ser o que os outros esperam para ser os outros em ti. Transforma o sapato em um barco, põe na água com tua foto dentro. Não arrumes a casa na segunda. Não sofras com o fim do domingo. Alterna a respiração com um beijo. Volta tarde. Dispensa o casaco para se gripar. Solta palavrão para valorizar depois cada palavra de afeto. Complica o que é muito simples. Conta uma piada sem rir antes. Não chores para chantagear. Comete bobagens. Ninguém lembra do que foi normal. Que tuas lembranças não sejam o que faltou dizer. É preferível a coragem da mentira do que a covardia da verdade. 

[Enviado por Rose Diehl]

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